As transformações da puberdade, os medos do puerpério e os infortúnios da menopausa. A composição hormonal do corpo feminino define muito mais que o funcionamento do coração, do metabolismo, da reprodução e do crescimento do corpo.
Os hormônios estão diretamente relacionados ao tempo de vida, à saúde e à qualidade de vida em diferentes fases, mas, nas mulheres, essas mudanças são ainda mais significativas, considerando as adaptações que o corpo passa em diferentes situações como gravidez, lactação e em virtude da redução dos hormônios femininos após a menopausa.
Com o objetivo de investigar esse campo, as pesquisadoras Paula Bargi de Souza e Grace Schenatto Pereira, ambas do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB/UFMG), desenvolvem diversas pesquisas apoiadas pela Fundação de Amparo à pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG). Os estudos chamam atenção, entre outros, para a necessidade de medidas e políticas públicas que favoreçam e considerem os ciclos circadianos (horários de trabalho e de descanso), tendo em vista os hábitos de vida da sociedade contemporânea.
Antes de partir para os estudos, é importante dar um passo atrás e entender o funcionamento desse grande “maestro” que é o sistema endócrino. Maria Marta Sarquis Soares, endocrinologista do Hospital das Clínicas e também professora da UFMG, explica que o sistema endócrino é composto por várias glândulas ou tecidos que produzem e secretam substâncias que servem como sinalizadores. “Um hormônio que é produzido e secretado por uma glândula pode agir nas células ao lado ou à distância, atingindo todo o corpo. Um exemplo de glândula é a tireoide. Sob estímulo dos hormônios do hipotálamo, que é uma estrutura do cérebro, e da adenohipófise, uma glândula localizada na base do cérebro, a tireoide produz os hormônios tireoidianos que vão agir basicamente em todas as células do corpo, do fio do cabelo ao coração, modulando o metabolismo e a temperatura corporal, o desenvolvimento e atividade do cérebro, a reprodução e muitas outras funções. Então, sem hormônio tiroidiano, uma série de funções são prejudicadas”, detalha.
A tireoide tem a forma parecida com uma borboleta, e fica localizada na parte anterior do pescoço, abraçando a traqueia. Esse protagonismo da glândula tem fundamento, pois os hormônios secretados por ela na corrente sanguínea agem nos receptores do coração, nos músculos, no fígado e em diversas outras partes do corpo. Maria Marta explica que todos os hormônios do corpo são muito importantes, pois cada um exerce uma função, mas que essas funções ficam ainda mais evidentes de acordo com as fases da vida.
Em seus atendimentos em consultório, a endocrinologista lida com pacientes com demandas variadas, de acordo com as diferentes faixas etárias. Na infância, alterações hormonais podem fazer com que a criança nasça com genitália ambígua, quando o órgão reprodutor da criança não é formado de forma adequada dentro do útero da mãe. “Isso é considerado uma emergência endocrinológica, porque geralmente está relacionado com um problema nas suprarrenais – que podem ser chamadas também de glândulas adrenais. São nessas glândulas que acontece a produção do cortisol, e quando você tem uma enzima que falta nessa cadeia de formação do cortisol, pode haver o acúmulo de hormônios masculinos que podem interferir na formação do órgão sexual. Então precisamos investigar o mais rápido possível, para dar uma resposta para aquela família”, explica.
Ainda na infância, a criança pode ter problemas com o hormônio do crescimento, o GH, da sigla em inglês growth hormone. Problemas nesse hormônio podem levar à falta de crescimento, nanismo ou a um desenvolvimento insatisfatório nessa fase. Hoje ele pode ser substituído de forma sintética graças à biotecnologia. Da mesma forma quando as crianças nascem com diabetes mellitus. Nesse caso, o diabetes mellitus tipo 1 é mais comum na infância, quando o organismo da criança não produz a insulina. Mas Maria Marta diz que casos do tipo 2 em crianças estão cada vez mais comuns, principalmente em função das condições de vida atuais, com alimentação baseada em alimentos ultraprocessados, obesidade infantil, falta de atividades físicas e altos índices de estresse.
Voltando às pesquisas, os ciclos da vida estão diretamente relacionados à ação dos hormônios no organismo, mas foi outro ciclo, o circadiano, que motivou o desenvolvimento da pesquisa Estudo da correlação entre a função tireoidiana e o relógio biológico: repercussões do hipotireoidismo na ritimicidade do metabolismo energético, de Paula Bargi de Souza. O ciclo circadiano pode ser entendido como o ciclo natural do próprio corpo, no decorrer das 24 horas, considerando estímulos e informações recebidos durante o dia e a noite. A luminosidade ao longo do dia é responsável por sincronizar as principais atividades e processos biológicos do corpo. Essa atividade é coordenada por um grupo de neurônios também no hipotálamo. “Ao longo da evolução, os seres vivos desenvolveram sob a influência do sistema rotacional da Terra, de modo que algumas atividades são favorecidas em determinados horários do dia. Então, no momento de repouso, por exemplo, você não vai ter um pico hormonal de adrenalina, em condições normais. À noite, acontece a redução da adrenalina e um aumento da melatonina, o hormônio sinalizador do fotoperíodo, de modo a favorecer o estado de repouso. Em relação aos hormônios que regulam o metabolismo pós-prandial (após as refeições), você tem os picos de insulina, que são dependentes da alimentação. Foi para investigar qual é a correlação do ciclo circadiano com os hormônios da tireoide, que propus esta pesquisa”, explica Paula.
Não por acaso a pesquisadora buscou trabalhar com o eixo tiroidiano. A tireoide está relaciona à segunda maior prevalência de doenças do sistema endócrino. Os casos mais comuns são de diabetes mellitus e, em seguida, estão as desordens tireoidianas, que são predominantes em mulheres. De acordo com dados da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), o hipotireoidismo, que é a produção insuficiente dos hormônios da tireoide, ocorre em cerca de 2% a 15% da população, mais predominantemente no sexo feminino atingindo cerca de 15 % das mulheres na pós-menopausa.
O último Estudo Longitudinal Brasileiro de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil/2021), que buscou avaliar a incidência de hipertireoidismo e hipotireoidismo e manifesto por meio de um levantamento em seis capitais brasileiras, apontou que o hipotireoidismo está chegando numa margem de 8% da população brasileira. Esse percentual está relacionado aos casos clínicos, ou seja, que foram diagnosticados, mas os especialistas acreditam que, com os casos não notificados, esse percentual pode chegar a 20%.
Paula Bargi de Souza explica que, em relação ao ritmo circadiano, o ser humano evoluiu para responder a essa mudança de claro e escuro do planeta. “Imagina a situação nos últimos 100 anos. Com a invenção da lâmpada e luz elétrica, a gente fica até mais tarde estudando, vendo Netflix, no celular, e a gente vai forçando e desregulando o nosso sistema. Há um termo que usamos na cronobiologia – ramo da ciência que estuda a organização temporal dos seres vivos – que é a dessincronização. Aquele costume de nossos avós e bisavós de irem dormir cedo e acordar com as galinhas não existe mais. Já estamos muito longe daquilo. Então, hoje, o que eu estudo é como esse impacto da vida contemporânea prejudica um balanço normal do eixo tiroidiano e reflete no metabolismo”, detalha.
De acordo com a pesquisadora, alguns estudos já associam a desordem tireoidiana com diabetes mellitus, por exemplo. Por isso pode-se inferir que as situações impostas no mundo contemporâneo prejudicam o organismo, levando a distúrbios endócrinos e metabólicos. Como a pesquisa ainda está em andamento, a hipótese central do trabalho é que os hormônios tireoidianos (HTs) modulam a expressão dos componentes do relógio biológico, presente em todas as células do corpo, e dos genes e proteínas controlados por ele nos tecidos envolvidos na regulação do metabolismo energético, o que poderia explicar a associação entre hipotiroidismo, diabetes mellitus e síndrome metabólica observada em estudos epidemiológicos. Para isso, a pesquisadora faz o uso de camundongos selvagens e geneticamente modificados para investigar o padrão da oscilação diária na atividade locomotora, na temperatura corporal e no consumo de oxigênio, entre outros parâmetros, em condições de hipotireoidismo tanto em machos quanto em fêmeas.
Se a realidade está posta, os dados produzidos nas pesquisas podem alertar para a necessidade de procurar medidas que auxiliem a prevenir ou lidar com distúrbios endócrinos. Para a pesquisadora, essas medidas passam por duas questões centrais: observar o tempo de trabalhar e o de descansar e incentivar a formulação de políticas públicas que favoreçam e considerem os ciclos circadianos e os novos hábitos de vida da sociedade. “Existem alguns estudos mostrando como tomar medidas para tentar dessincronizar o menos possível o corpo ou como reverter esses quadros. Também é preciso pensar que na sociedade contemporânea, as crianças estão entrando nas escolas às 7h da manhã, que não é o horário mais adequado para estudo e aprendizado nessa fase da vida, sem contar que acordam muito cedo dependendo do tipo de transporte até a escola. Imagine esse indivíduo sendo submetido a uma prova ou avaliação nessa hora, o hormônio do cortisol dela vai nas alturas. Assim, estudar as alterações no balanço hormonal decorrentes do padrão de vida atual é muito importante, porque está tudo muito correlacionado", exemplifica.
A endocrinologista Maria Marta lembra que o contexto em que estamos inseridos e os hábitos de vida interferem tanto no funcionamento hormonal que, recentemente, pesquisadores do Departamento de Pediatria da Universidade de Chieti, na Itália, desenvolveram o estudo Early and precocious puberty during the COVID-19 pandemic, Puberdade precoce durante a pandemia de COVID-19, em tradução livre. “Como a pandemia gerou um grande impacto no cotidiano de crianças e adolescentes, com o isolamento que levou a um estilo de vida mais sedentário, maior tempo de exposição às telas, estresse, entre outros fatores, esses pesquisadores investigaram uma taxa de progressão puberal mais rápida, que pode ter levado as meninas a menstruarem mais cedo durante esse período”, conta.
Além das transformações da adolescência, a mulher que amadurece poderá passar também por dois outros períodos igualmente emblemáticos: o puerpério, para aquelas que optam por ter filhos, e pela menopausa. A endocrinologista Maria Marta, que também atua na área de osteometabolismo, destaca a perda de cálcio por qual passam as mulheres durante a gestação e o período em que estão amamentando. A médica explica que essa função é coordenada pelo paratormônio (PTH), hormônio que pouca gente conhece, mas que é produzido pelas glândulas paratireoides, localizadas junto à glândula tireoide. O PTH é um dos principais hormônios que controlam os níveis do cálcio e do fósforo no organismo. “Nessas duas fases, a mulher tem perda de massa óssea e muitas sofrem fraturas nesses períodos. Durante a gravidez, ela perde cálcio para que a formação do esqueleto da criança seja possível, mas nessa fase o organismo também tem formas de compensação dessa perda. Já na amamentação, essa proteção não existe, então se perde mais massa óssea. E tudo isso está relacionado à redução dos hormônios femininos (hipogonadismo), do aumento da prolactina e ocitocina, que além da perda óssea também causa redução da libido”, acrescenta Maria Marta.
Entretanto, essa perda de massa óssea e de libido na gravidez e amamentação pode ser considerada apenas um ensaio para o que ainda está por vir: a menopausa. Essa fase é conhecida como a última menstruação da mulher. Ela acontece porque as mulheres nascem com dois óvulos, com diversos folículos dentro deles, de número limitado, que se transformarão nos futuros óvulos. Quando esse número termina ou está no final, o organismo entra na menopausa, fato que ocorre em torno dos 50 anos, mas pode variar de acordo com a história e genética de cada mulher. Esses folículos ovarianos produzem dois hormônios, o estrogênio e a progesterona. Por volta dos 40, 50 anos da mulher, a progesterona deixa de ser fabricada e o primeiro sintoma é a irregularidade menstrual (os ciclos ficam inicialmente mais curtos e depois ocorrem atrasos menstruais), além de irritabilidade, nervosismo e insônia. Essa fase anterior à menopausa é chamada de climatério ou pré-menopausa.
Para investigar esses e outros sintomas na menopausa, a pesquisadora Grace Schenatto Pereira desenvolve o estudo Sistemas Cerebrais e Déficits de Memória na Transição para Menopausa. No estudo, ela simulou a menopausa em ratas, por meio da retirada dos ovários, e observou o comportamento desses animais em relação à falta dos hormônios femininos e a perda de memória.
O estudo em si já é inovador, mas o processo com o qual Grace se deparou até chegar nesse estudo foi fundamental para que ela tivesse a dimensão do tamanho da ausência desse tipo de pesquisa, sobretudo quando o assunto é menopausa. “Quando eu ingressei como professora na UFMG, eu estudava o efeito da acetilcolina, que é um neurotransmissor, no funcionamento do cérebro, especialmente na memória. Então busquei a diferença que existia na modulação da memória por esse neurotransmissor em modelos animais fêmeas e machos. Vi que tinha uma literatura relativamente pequena no que dizia respeito a estudos em fêmeas. Essa escassez de resultados me levou a desenvolver o estudo em fêmeas, afinal, nem tudo que funciona em macho funciona em fêmeas. Atualmente, as revistas científicas têm pedido cada vez mais que os ensaios comportamentais ou outras medidas sejam testados em machos e fêmeas”, conta.
A pesquisadora acredita que essa carência de estudos também está relacionada a uma questão sociocultural, em uma sociedade que supervaloriza a fase reprodutiva da mulher. “Fala-se muito da menina que está florescendo, da primeira menstruação, do primeiro absorvente, da gravidez, da amamentação. Tudo isso é discutido ainda com muito romantismo. Mas da menopausa ninguém fala. É como se nessa fase a mulher não existisse e, como estamos vivendo mais, inevitavelmente vamos chegar nela, é preciso falar e pesquisar sobre isso”, defende Grace.
Os estudos permitiram que a pesquisadora conseguisse reproduzir os efeitos sentidos na menopausa, como ansiedade, depressão e perda de memória nos modelos animais. “Percebemos déficit de memória, aumento de ansiedade e depressão. E, a partir da reposição hormonal, é possível recuperar esses efeitos. Agora estamos numa fase da pesquisa que a gente precisa entender um fenômeno interessante que é se o fato de essa ansiedade e memória estarem relacionadas ao medo. Então, ao mesmo tempo, as fêmeas têm mais medo numa situação, mas menos medo em outra. E isso, ao que tudo indica, é um efeito relacionado a esses hormônios. De uma área do cérebro que chama amígdala, que tem uma importância no processamento de emoções", explica.
A endocrinologista Maria Marta explica que, no consultório, os sintomas da menopausa são motivos de muitas queixas e preocupações. Osteoporose, relacionada à dificuldade de metabolismo do cálcio; hipotireodismo, caracterizado pela queda na produção dos hormônios T3 (triiodotironina) e T4 (tiroxina); ganho de peso, fadiga, fraqueza, muscular, perda de memória e depressão são alguns dos mais frequentes. Dessa forma, os estudos desenvolvidos recentemente pelas professoras Paula e Grace, em colaboração, e com apoio da FAPEMIG, demonstrou que o hipotireoidismo afeta a memória principalmente em camundongos do sexo feminino, e que esse efeito também depende do horário do dia que a memória é evocada. Esse estudo chamou a atenção da comunidade científica e foi contemplado pela Sociedade Brasileira de Fisiologia, a SBFis, com o Prêmio Branca de Almeida Fialho de 2023.O prêmio é um reconhecimento à primeira mulher-fisiologista do Brasil de que se tem registro e objetiva valorizar pesquisas em fisiologia que considerem as mulheres/fêmeas como sujeitas de pesquisa.
A médica explica que, muitas vezes, a pessoa acha que tem problemas hormonais tireoidianos porque está ganhando peso, perdendo cabelo, a unha está ressecada ou porque está com muita sonolência, mas tudo isso pode ser pela própria menopausa ou até mesmo estresse. Então é preciso fazer um diagnóstico diferencial para distinguir um simples cansaço a problemas da tireoide”, exemplifica.
A endocrinologista Maria Marata explica, ainda, que, para aquelas mulheres em que o risco da reposição hormonal é maior que os benefícios e mesmo para as mulheres que fazem reposição, o fundamental é apostar em hábitos de vida saudáveis, que já apresentam comprovação científica de que geram benefícios. “Atividade física regular e adequada a cada pessoa, alimentação saudável com menos alimentos ultraprocessados, uma rotina menos estressante e equilíbrio nas diversas áreas da vida são medidas simples que todas nós podemos fazer mesmo antes da menopausa. É preciso cuidar bem do corpo desde a infância, porque é o nosso banco, é a nossa reserva para a vida”, recomenda a médica. “Além de todos esses cuidados, precisamos ficar atentos à duração e à qualidade do nosso sono, respeitando nosso ritmo biológico para uma vida mais saudável e duradoura”, complementa a pesquisadora Paula Bargi.
Redação: Vivian Teixeira | Comunicação Fapemig