Projeto que busca soluções para minimizar impactos ambientais causados pelos rompimentos das barragens de mineração em Minas Gerais alerta para novo risco com implantação de mineração no rio Santo Antônio
Pesquisadores das universidades federais de Minas Gerais, do Espírito Santos e da estadual de Montes Claros se reuniram na UFMG para discutir resultados do projeto “Restauração com Ciência no rio Doce: da dimensão edáfica ao sensoriamento remoto”, coordenado pelo professor Geraldo Wilson Fernandes, do departamento de Genética, Ecologia e Evolução do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG.
Entre 2016 e 2023, as equipes percorreram as áreas atingidas pelo rejeito de minério, assim como as áreas preservadas da bacia, estudando formas de promover a restauração da biodiversidade local. “É um grande problema quando a restauração é somente um plantio de espécies, como se fosse um jardim, sem restaurar funções”, explica o pesquisador Tiago Shizen, do Laboratório de Ecologia Evolutiva do ICB UFMG. Segundo Shizen, o processo de restauração ecológica busca restabelecer funções de um ecossistema, como a capacidade de sequestrar carbono, absorver e filtrar água no solo entre outras funções que um ecossistema saudável pode produzir.
“A restauração se diferencia de outras práticas de recuperação por se basear em ecossistemas de referência: áreas preservadas, ou parcialmente conservadas, que servem de espelho da biodiversidade antes da degradação”, orienta, destacando ainda que este processo guia a restauração desde o planejamento até a escolha de espécies, e a consequente restauração das funções do ambiente.
As espécies identificadas envolvem tanto fungos na adaptação da Mutamba, espécie de nome científico Guazuma ulmifolia, encontrada com facilidade na Mata Atlântica, quanto as espécies Deguelia costata, mais conhecida como Embira de carrapato, e a Peltophorum dubium, ou Canafístula.
Um dos produtos desenvolvidos durante o workshop e que será lançado em breve pelo projeto é um documento com propostas e orientações para auxiliar gestores na aplicação do conhecimento científico para o rio Doce. Na visão de Tiago Shizen, as políticas públicas que orientam restauração ecológica não são específicas sobre qual a definição de referência. “Comumente são utilizadas poucas espécies resultando em ecossistemas simplificados, com pouca biodiversidade e que vão gerar menos serviços ecossistêmicos”, explica.
A heterogeneidade dos ecossistemas do rio Doce e a importância de se considerar a maior diversidade possível de espécies para atender às diferenças ao longo da bacia, são algumas das principais mensagens do documento. O documento também vai alertar sobre os riscos ao rio Santo Antônio, um afluente do rio Doce e fonte de vida aquática, de fauna e flora para repovoar o Doce. “O Santo Antônio está sob ameaça com a implantação de um grande complexo minerário em sua bacia e isso colocará em risco um dos principais ecossistemas de referência e expor à degradação novamente o rio Doce”, adverte a peça, que lembra ainda a proximidade do marco histórico de uma década do rompimento da barragem de Fundão e ainda há muito a ser feito.
“A definição dos ecossistemas de referência é um passo inicial, mas mais pesquisas precisam ser feitas e mais ações tomadas. Esperamos que as políticas públicas sejam realmente aplicadas, e que considerem o conhecimento científico já produzido”, enfatizou o coordenador do projeto, professor Geraldo Wilson.
Apenas 0,8% da vegetação do rio Doce foi restaurada até agora. “Uma quantidade insignificante perto da proporção do impacto”, afirma o pesquisador Fernando Goulart, que colabora na pesquisa no campo da síntese ecológica. Segundo ele, mais de um milhão de pessoas foram afetadas pelo rompimento da barragem. Pelo menos 300 mil delas tiveram prejuízo no acesso à água potável. E o aumento da área impactada continua crescendo. “Mais de 600 km de rio foram afetados e há indícios de que o lençol freático da porção estuarina está contaminado. Na porção marinha, o impacto passa de 300 km, indo de Marataízes, no Espírito Santo, até o arquipélago de Abrolhos, na Bahia.
“A cada chuva que provoca enchentes, ou quando há frentes frias no oceano, esses rejeitos são movidos e há aumento da contaminação”, afirma Goulart, para quem a cada ano piora a qualidade da água e aumenta a mortalidade de peixes. “É como se a barragem rompesse novamente”, compara. E o impacto chegou a áreas de extrema importância para a conservação da biodiversidade de áreas brasileiras que são prioritárias para a conservação de mamíferos, peixes, plantas raras, répteis e anfíbios. Os especialistas defendem que a restauração da bacia do rio Doce beneficiará toda a biodiversidade, também em terra firme.
Um levantamento das árvores existentes na bacia do rio Doce em Minas Gerais, partindo de Mariana até a divisa com o Espírito Santo, definiu os ecossistemas de referência. Segundo a responsável por esta etapa do trabalho, a professora Yule Ferreira, da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), também foram analisadas as sementes contidas no solo, em maioria herbáceas, plantas aromáticas ou decorativas, muito usadas também de maneira medicinal. “O banco de vegetação estocado na terra é fonte de regeneração que pode ser usada nas áreas impactadas”, explica, afirmando ainda que conhecer essas espécies permite inferir o impacto na biodiversidade.
O rio Doce tem um histórico de perturbação desde o período colonial brasileiro. Há muito tempo sua bacia vem sendo degradada, mas no Espírito Santo este impacto é devastador, sentencia o professor Henrique Machado, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), e quem conduziu a etapa do projeto até a costa. No entanto, ele lembra que, apesar do processo de degradação ambiental e florestal, há uma alta diversidade de espécies em toda a bacia, mas também há muita heterogeneidade.
“Em poucos metros tudo pode mudar. Não é porque é o mesmo rio, o mesmo bioma, o mesmo estado que se encontram as mesmas espécies”, esclarece. Por isso, padronizar o procedimento de restaurar todo o ecossistema, é um equívoco grande. Quanto maior a biodiversidade, mais estáveis e mais funcionais são os ecossistemas. “Tentativas de demonstrar os protocolos de restauração baseados em conjuntos de espécies já determinadas, sem realizar estudos completos como o que foi desenvolvido, eliminam espécies importantes e fazem apenas recomposição vegetal”, ensina o cientista.
Um outro estudo complementar ao projeto buscou identificar a estratégia ecológica de cada espécie. O biólogo Daniel Negreiros, doutor em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre, e pesquisador do ICB UFMG, responsável por essa etapa usou estratégias ecológicas conhecidas como Triângulo CSR. De grande valor operacional num contexto ecológico, elas são úteis para indicar qual a estratégia de sobrevivência de cada espécie para lidar com a escassez de recursos. “Competir com plantas vizinhas; tolerar falta de luz, de nutrientes no solo; secas prolongadas, deposição de poluentes, ou ainda, se especializar em gerar muitos descendentes, mas em contrapartida, ter um ciclo de vida muito curto”, alerta.
Negreiros salienta ainda que cada aspecto desses é observado em um dos vértices do esquema triangular CSR. Na bacia do rio Doce, os resultados preliminares indicam que, nas áreas impactadas pela deposição do rejeito, as espécies têm se mostrado extremamente competitivas e com crescimento acelerado. “É uma estratégia da planta para sobreviver à mudança do solo. Ela cresce pra cima, pra buscar luz ou espalhar mais descendentes.”, completou.
Na restauração ecológica, além de identificar e conhecer as estratégias das espécies, é preciso considerar outros fatores que compõem o seu desenvolvimento. “As plantas não crescem isoladas de outros organismos. Tem toda uma microbiota no solo que é fundamental para restaurar o ecossistema.”, explica a pesquisadora Maria Luiza de Moura. O trabalho dela analisou a contribuição de fungos na adaptação da Mutamba, espécie de nome científico Guazuma ulmifolia, encontrada com facilidade na Mata Atlântica.
Nos solos com rejeito de minério, as plantas têm dificuldade para obter nutrientes e até mesmo realizar fotossíntese. Mas quando suas raízes se associam a fungos, as chamadas micorrizas, a planta se beneficia dessa troca, obtendo do solo os nutrientes em falta. Transferindo partes desses fungos (os inóculos) de uma planta para outra é possível torná-las mais tolerantes ao estresse químico e hídrico do solo. Os experimentos em laboratório com a Mutamba tiveram resultados positivos e indicaram como os inóculos de micorrizas podem ser utilizados nos projetos de restauração para aumentar a capacidade de resistência das plantas.
Bárbara Dias, mestranda do Laboratório de Ecologia Evolutiva da UFMG, identificando os efeitos do rejeito no desenvolvimento das plantas a partir de estudo da espécie Deguelia costata, mais conhecida como Embira de carrapato, Peltophorum dubium ou Canafístula, nativas da região. Os resultados ainda estão sendo revisados, mas indicam que as espécies se adaptaram bem e são potenciais para restauração do ecossistema.
João Herbert Moreira, da Embrapa Milho e Sorgo, constatou que retirar os sedimentos da barragem não é a melhor solução. “O dano causado no processo de retirada seguramente vai ser pior. A inserção de tratores e caminhões, a raspagem e, posteriormente, o depósito desse material: em que lugar? uma nova barragem? Segundo o pesquisador, o custo benefício seria questionável. Os impactos no restabelecimento da vegetação vão variar de acordo com o volume de sedimentos encontrados nas margens, que vão de centímetros até mais de dois metros em algumas áreas.
Redação: Raíra Saloméa/Laboratório de Ecologia Evolutiva e Biodiversidade ICB UFMG
Edição: Marcus Vinicius dos Santos/Comunicação ICB UFMG