Cientistas do departamento de Bioquímica e Imunologia do ICB UFMG observaram uma associação positiva, de ajuda mútua, entre os vírus de insetos e o da dengue, o que é incomum quando um organismo é duplamente infectado
Um estudo com duas espécies de mosquitos do gênero Aedes — aegypti e albopictus – identificou que, na presença de infecção por dois vírus específicos de insetos (PCLV e HTV), os insetos da espécie Aedes aegypti ficam mais propensos a transmitir a dengue e a zika. O trabalho resultou no artigo Mosquito vector competence for dengue is modulated by insect-specific viruses, publicado no início deste ano, na Nature Microbiology.
Líder do grupo responsável pela pesquisa, o professor João Trindade Marques (foto), do Departamento de Bioquímica e Imunologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG, explica que a associação positiva identificada entre a transmissibilidade da dengue e a presença de vírus específicos nos mosquitos é incomum.
“Em geral, quando um organismo é infectado por dois vírus, o mais comum é que haja uma competição entre eles. O esperado, na verdade, é que eles não se ajudem, mas se atrapalhem. Nesse caso, observamos uma associação positiva extremamente intrigante. O mais interessante é que há pouquíssimas alterações na resposta ao vírus da dengue no mosquito quando eles carregam, ou não, o HTV e o PCLV. Ou seja, um mosquito que carrega os três vírus oferece uma resposta muito parecida com aquele que carrega um só, o que já é interessante e mostra o quão adaptados esses dois vírus estão ao inseto, sem causar grandes mudanças em sua fisiologia”, afirma.
Para chegar aos resultados, o grupo coletou 815 mosquitos Aedes em ambientes urbanos, em 12 países. “O nosso maior foco foi o Brasil, uma vez que o país é o epicentro dessas doenças. Mas nós pegamos também insetos de diversas regiões do mundo, a fim de analisar os vírus circulantes em outras populações. A partir daí, nosso trabalho buscou identificar os vírus circulantes nos mosquitos Aedes aegypti e Aedes albopictus e verificar que correlações poderiam explicar surtos de dengue em determinados momentos e locais”, detalha Marques.
Na análise, conduzida no Laboratório de RNA de Interferência do ICB, os pesquisadores identificaram 12 vírus circulantes – 10 presentes em Aedes aegypti e dois em Aedes albopictus. “Essa circulação foi detectada no viroma global. Quando começamos a olhar por região, encontramos, no máximo, seis vírus circulando num dado momento em uma única população de mosquitos, o que ainda é um número altíssimo”, explica o professor.
João Marques destaca o aspecto que mais chamou a atenção dos pesquisadores nesta etapa: “nessa análise global, não foi identificado nenhum arbovírus [vírus que infecta humanos por meio da picada de insetos] conhecido. Todos são os chamados vírus específicos de insetos, ou seja, infectam o mosquito, mas não são transmitidos ou não têm a capacidade de infectar um animal vertebrado. Não só humanos, mas qualquer outro animal vertebrado”, explica.
Outro ponto que despertou a atenção dos pesquisadores, segundo João Marques, foi a presença frequente e abundante de dois vírus nos mosquitos Aedes aegypti, o Humaita Tubiacanga virus (HTV), que recebeu o nome das duas regiões em que foi encontrado no Rio de Janeiro, em 2015, e o Phasi Charoen-like virus (PCLV), que havia sido parcialmente identificado alguns anos antes na Tailândia e caracterizado em detalhes em 2015, em uma pesquisa conduzida pelo laboratório do ICB. João Marques salienta que não foi encontrado, na análise, nenhum vírus específico que ocorra nas duas espécies, por isso o foco da pesquisa se voltou para o Aedes aegypti. “Fizemos alguns trabalhos de laboratório que demonstraram que há uma restrição biológica do Aedes albopictus a um dos vírus encontrado no Aedes aegypti, ou seja, mesmo quando você força a infecção em laboratório o vírus não consegue se reproduzir dentro dessa espécie”, detalha o professor.
A equipe do laboratório tem-se concentrado em tentar entender o que torna o Aedes aegypti um importante vetor de transmissão de arbovírus no ambiente urbano, motivo pelo qual já havia lidado com os agentes infecciosos em outros momentos. “O HTV e o PCLV são vírus que conhecemos muito bem e que, nessa análise, apareceram, mais uma vez, como os mais frequentes e prevalentes nas populações de Aedes aegypti do mundo. Como esses dois vírus eram os mais comuns e eram os mais abundantes em países com maior circulação de arbovírus, localizados no Sudeste asiático e na América do Sul, imaginamos que poderia haver alguma correlação da circulação desses vírus específicos com a circulação dos arbovírus e, posteriormente, também com os surtos de dengue”, afirma João Marques.
O passo seguinte foi uma análise epidemiológica baseada em dados de campo, coletados em 2010 e 2011, em Caratinga (MG), para avaliar a circulação de dengue nos mosquitos e em pacientes infectados na cidade e compreender a ocorrência de surtos. “Nós usamos os mesmos dados numa reavaliação, agora considerando a presença do HTV e do PCLV. O resultado interessante foi que nós percebemos uma associação positiva: na presença do HTV e do PCLV, observamos que os mosquitos tinham chance três vezes maior de carregar o vírus da dengue.
Com base na constatação de uma associação positiva, os pesquisadores isolaram mosquitos da mesma população, alguns com a presença dos dois vírus específicos e outros sem esses agentes infecciosos, para fazer um experimento, que consistia na exposição de camundongos aos insetos dos dois grupos. “Decidimos expor os animais aos vírus da dengue e da zika, e, em ambos os casos, observamos que a presença do HTV e do PCLV nos insetos facilitava a replicação do vírus da dengue e da zika”, detalha João Marques.
Outro ponto sensível, segundo o professor, é que a presença do HTV e do PCLV leva ainda à diminuição do período de incubação extrínseco – que é o período de incubação do vírus da dengue e da zika no mosquito –, que se inicia quando o inseto adquire o sangue contaminado e se encerra no momento em que ele é capaz de transmitir o vírus.
“Esse tempo é extremamente importante, porque, quanto menor, maior a possibilidade de que haja um surto, já que o mosquito em campo tem uma expectativa de vida relativamente curta. No nosso caso, observamos uma redução de pelo menos dois dias no período de início da transmissão. Quando calculada a possibilidade de transmissão, considerando a presença desses dois vírus, nós observamos que aumenta pelo menos 10 vezes o número de casos de dengue esperados”, explica o professor do ICB.
Um impacto relevante observado nos mosquitos, pela presença do HTV e do PCLV, é na expressão dos genes de histonas, as proteínas básicas que compactam o cromossomo dos animais. “Isso foi extremamente interessante, porque se há alterações na estrutura e na organização do DNA, espera-se que haja mudanças massivas na expressão gênica, o que não ocorreu. Isso sugere que o impacto na expressão dessas proteínas não está relacionado à função básica preconizada para elas e também a possibilidade de uma função nova”, afirma Marques.
Segundo o professor, foi possível perceber, ainda, uma relação entre a expressão de uma das histonas do Aedes aegypti, a H4, com o comportamento do vírus da dengue nos insetos. “Nós mostramos que, ao se controlar experimentalmente os níveis da histona H4, é possível afetar a replicação do vírus da dengue, ou seja, o vírus é extremamente sensível à expressão dessa proteína. Mas isso o afeta de uma maneira que ainda não sabemos”, explica João Marques.
O professor João Marques defende que compreender os fatores que afetam a transmissão de arbovírus de mosquitos para humanos deve ser prioridade, já que é uma importante ferramenta para gerar informações relativas à saúde pública e subsidiar a proposição de intervenções direcionadas. Nesse aspecto, segundo o pesquisador, as descobertas publicadas no artigo, "abrem três vias principais de trabalho".
"A primeira delas é a identificação de um novo parâmetro, que tem de ser considerado em qualquer estudo cujo objetivo é a análise de risco de surtos. Hoje, a maioria das análises é feita com estudos de densidade de mosquito, e o nosso estudo mostra que um município ou região pode ter uma densidade dez vezes menor, mas, se houver a presença desses dois vírus específicos nos insetos, o risco de surto é tão grande quanto em um local com uma densidade dez vezes maior", destaca.
A segunda possibilidade de atuação, segundo João Marques, é "modificar os vírus ou o mosquito, para interferir na interação do inseto com esses dois vírus específicos. Com isso, vamos afetar também a interação com o vírus da dengue. Se conseguíssemos eliminar esses vírus da população de mosquitos, automaticamente a população humana se tornaria menos exposta ao vírus da dengue".
O terceiro aspecto elencado pelo pesquisador é que, ao entender como os vírus facilitam a replicação do vírus da dengue, é possível também compreender fatores do mosquito que são importantes para ele e que podem ser alvos de intervenção. "Provavelmente nós vamos achar alvos afetados por esses vírus e que afetam o vírus da dengue. Isso poderia nos indicar, por exemplo, o que seria possível modificar geneticamente em populações de mosquito para gerar mosquitos resistentes à dengue. O que estamos tentando no momento é encontrar opções. Posteriormente, mesmo que um mosquito geneticamente modificado não seja liberado pelos órgãos competentes, nós poderíamos descobrir, por exemplo, drogas que afetam o gene da mesma forma e que poderiam ser utilizadas como antiviral para o mosquito, para que ele se cure", complementa.
Artigo: Mosquito vector competence for dengue is modulated by insect-specific viruses
Publicação: 5 de janeiro de 2023, na Nature Microbiology
Redação: Hugo Rafael - Agência de Notícias da UFMG